domingo, 5 de maio de 2013


Qual é o pior inimigo da Verdade?

Por em 11.03.2013 as 4:35
Nietzsche

Um pouco mais sobre ceticismo científico

Como vimos no artigo da semana passada refutabilidade ou falseabilidade, proposto por Karl Popper nos anos 1930, é o conceito chave por trás do ceticismo científico e fundamenta-se na necessidade de que toda a hipótese científica quando formulada tenha embutida em seu enunciado um “mecanismo de previsão de erros”, ou seja, que ela ofereça a possibilidade de ser refutada ou falseada.
Se for considerada hipótese científica, deve admitir logicamente duas possibilidades: a de ser verdadeira ou a de ser falsa.
Repito: isso deve ser previsto em seu enunciado.
Por exemplo, quando formulamos depois de detidas observações da natureza a seguinte proposição:
“Todo o animal que possui bico é uma ave”.
Como hipótese científica deve admitir duas possibilidades: verdadeira ou falsa.
O cientista pode ter observado milhares de animais com bico e todas foram classificadas como ave, por isso considerou inicialmente verdadeira sua hipótese.
Porém, ela possibilita em seu enunciado a refutação. Pois basta aparecer um animal que tenha bico e que não seja ave que a hipótese será refutada.
Por essa razão tal assertiva é científica (embora não seja verdadeira, pois o ornitorrinco, por exemplo, possui bico e não é ave).
Agora, se a proposição de trabalho fosse essa:
“O tomate é vermelho ou não é vermelho”.
Mesmo sendo uma verdade, tal proposição não é considerada como científica, posto que em qualquer cenário ela nunca será falseada.
Para ser considerada científica, a proposição deve embutir em seu enunciado a possibilidade de ser refutada. E nesse caso não é oferecida tal possibilidade.
Vamos a outro exemplo:
“O íbis é um animal sagrado.”
Não existe nessa premissa possibilidade de falseá-la, pois não há experimento laboratorial ou mental que se possa imaginar para contestar o conceito de sagrado do íbis. Além do mais, esse é um argumento de autoridade(aquele que não pode ser refutado) pois um deus de nome Thot deixou escrito que íbis é um animal sagrado (e de acordo com essa sociedade não há autoridade maior que a de um deus). Logo, essa não é uma premissa científica, pois não pode ser falseada ou refutada.
De fato é uma premissa religiosa proveniente do Antigo Egito.
Em tempo:
Quero deixar claro que não estou questionando aqui a veracidade da premissa se o íbis – é ou não é – um animal sagrado. Estou apenas apontando o fato de que tal premissa não é científica, pois não atende ao princípio da falseabilidade.
Mais um exemplo:
Lavoisier, depois de um meticuloso estudo científico, afirmou que cada molécula de água é constituída por dois átomos de hidrogênio e um átomo de oxigênio.
Tal afirmativa pode ser testada em laboratório e consequentemente pode ser refutada se os resultados não forem os previstos.
Logo, essa é uma premissa científica.
Karl Popper ao enunciar esse princípio, quis preservar a ciência de que premissas tidas como científicas perpetuassem erros seculares geralmente criados por argumento de autoridade (que não admite contestação) ou pelo problema da indução (questão um tanto mais delicada que detalharemos nos próximos artigos).
Evidentemente tudo depende do entendimento correto do que é uma hipótese científica.

Hipótese Científica

O termo hipótese pode ser conceituado como sendo uma proposição a partir do qual se pode deduzir, pelas regras da lógica, um conjunto secundário de proposições, que têm por objetivo elucidar o mecanismo associado às evidências e dados experimentais a se explicar.
E é claro se a hipótese foi formulada corretamente, dentro do método científico, ela pode ser confirmada ou refutada por meio de experimentos, inferências lógico-matemáticas, confrontações com dados colhidos de observações, etc.
Literalmente pode ser compreendida como uma suposição ou proposição na forma de pergunta ou questionamento, uma conjetura que objetive orientar uma investigação, seja por antecipar características prováveis do investigado, seja pela confirmação ou não por meio de deduções lógicas dessas características.
Muitas vezes o confronto com os resultados obtidos, confirma ou refuta a hipótese inicial e aponta novos caminhos de investigação que podem então gerar novas hipóteses e novos experimentos, e assim por diante.
Geralmente essa cadeia de eventos desde uma hipótese inicial até o desenvolvimento de um novo paradigma (que muitas vezes geram aplicações práticas, ou seja, tecnologia) segue outro atributo medular da ciência, que é o do acúmulo histórico do conhecimento científico, no qual um pesquisador apoia-se no conhecimento conquistado por seus antecessores, ao mesmo tempo, que testa esse conhecimento exaustivamente procurando brechas e inverdades que possam estar inclusas em seus enunciados.
Veja o exemplo que segue.

Uma breve história da Aspirina

  • Textos médicos assírios (Século VIII a.C) descreviam que o pó ácido da casca do salgueiro aliviava dores (propriedade analgésica) e diminuía a febre (propriedade antipirética).
  • Hipócrates (Século V a.C) confirmou em seus escritos essas propriedades analgésicas e antipiréticas da casca do salgueiro como resultado de sua prática e de seus discípulos.
  • Edmundo Stone (1763) confirmou o proposto por Hipócrates e produziu extratos onde isolou o princípio ativo: ácido salicílico (experimentos em laboratório e práticas de campo).
  • Henri Leroux, e Raffaele Piria (1828) Confirmaram o princípio ativo da casca de salgueiro descoberto por Edmundo Stone (ácido salicílico) e o isolaram na forma cristalina (experimentos em laboratório).
  • Felix Hoffmann e/ou Arthur Eichengrun (1897) Confirmaram o princípio ativo que foi isolado em 1828 e produziram um derivado menos agressivo ao sistema digestório: o ácido acetil-salicílico (experimentos em laboratório).
  • Laboratórios Baeyer (1899) – produziram e comercializaram o ácido acetil-salicílico com o nome fantasia “aspirina” (experimentos em laboratório e testes e práticas de campo).
  • John Vane (1971) – elucidou o mecanismo de ação do ácido salicílico o que lhe valeu o prêmio Nobel de Medicina de 1982 (experimentos em laboratório e testes e práticas de campo).
Peço ao leitor fã de História da Ciência que me perdoe por esse sobrevoo histórico tão superficial, porém o objetivo aqui é o de ilustrar o conceito de hipótese e falseabilidade.
Assim temos:
  1. Hipótese inicial: extratos ácidos da casca do salgueiro possuem princípios analgésicos e antipiréticos – cânones assírios, provavelmente fundamentados na tradição oral e práticas médicas rudimentares dos povos mesopotâmios.
  2. Hipótese confirmada por Hipócrates e Edmundo Stone por experimentos de campo.
  3. Nova hipótese: o princípio ativo é o ácido salicílico – Edmundo Stone (experimentos em laboratório e testes de campo)
  4. Hipótese confirmada por Hoffman (laboratórios Baeyer) e Eichengrun (segundo alguns peritos).
  5. Nova hipótese criada por Hoffman e Eichengrun: o ácido acetil-salicílico oferece melhores resultados que o salicílico (experimentos em laboratório).
  6. E assim por diante.
Em cada um dos momentos históricos, novos paradigmas foram apresentados, caracterizando aí a invenção de um medicamento sintético que custou para a humanidade a bagatela estimada em dez mil anos de sua história!
E é assim na maioria das conquistas científicas que originam tecnologia. Muitas vezes custa o esforço de toda uma geração, ou de centenas.
Lembre-se disso quando tomar um analgésico!

Mentira x Convicção

Porém, muitos detratores da ciência continuarão em sua ingenuidade achando que o tal princípio da falseabilidade e o ceticismo científico que dele advém é na maioria das vezes inócuo, pois existem muitos campos da ciência moderna (cuja comprovação é muito complicada ou talvez impossível) que obrigam que as pessoas acreditem nos argumentos dos cientistas assim como acreditam em algum tipo de guru. Simples assim.
Aí é que se encontra a confusão.
O funcionamento da ciência e da tecnologia não depende da fé nos cientistas.
Pelo contrário!
É duvidando deles que a ciência evolui e se torna paulatinamente mais confiável.
Pois o cientista (como ser humano que é) pode errar e também pode mentir e enganar.
O cientista pode usar de seu conhecimento para abusar da boa fé do semelhante, extorquir-lhe dinheiro, e transformá-lo em um fantoche – por exemplo – exatamente como poderia fazer e faz qualquer outro ser humano que não siga preceitos éticos que visem o bem comum. Seja ele um cientista ou não.
Porém a ciência como algo que se arroga de historicamente responsável procura prevenir-se contra esses heterogêneos, investindo no ceticismo de todos os seus praticantes, com o principal objetivo de não permitir que se perpetuem inverdades seja elas intencionais ou não.
Por isso, se não existir possibilidade de duvidar – não é ciência!
Para concluir, algumas palavras de Nietzsche:
A convicção é a inimiga mais perigosa da verdade do que a mentira!
Será?
-o-
[Imagem: wikipedia commons]
[Leia os outros artigos de Mustafá Ali Kanso]

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